Os músculos são os motores das alavancas biológicas,
responsáveis por frear, acelerar ou ainda estabilizar os segmentos corporais
através da contração de suas fibras musculares e resultante produção de força. Entre
os fatores que determinam a capacidade de produção de força de um músculo
durante a contração, estão a velocidade e o (estado de) comprimento de suas
fibras musculares. Essas relações, isoladamente, são propriedades mecânicas do
músculo conhecidas respectivamente como relação força-velocidade e relação força-comprimento.
Embora essas propriedades tenham sido amplamente investigadas em preparações
isoladas in-vitro, pouco ainda se sabe
sobre o papel e expressão dessas propriedades contráteis no movimento humano.
Em avaliações e intervenções focadas no sistema
músculo-esquelético, é comum assumir que as relações torque-velocidade angular
e torque-ângulo articular refletem diretamente o comportamento contrátil do
músculo, oferecendo uma janela para verificação das relações força-comprimento
e força-velocidade de suas fibras. No entanto, durante a contração in vivo, as
fibras musculares excitadas pelo Sistema Nervoso interagem com outros elementos
anatômicos que interferem nessa relação; entre eles, os tendões em série com o
músculo. Essa interação com elementos elásticos em série, combinada ao complexo
controle exercido pelo sistema nervoso durante contrações voluntárias, impacta
na expressão das relações força-comprimento e força velocidade das fibras
musculares durante o movimento humano. Através de técnicas de ultrasonografia é
possível monitorar o fascículo muscular de determinados músculos durante a
contração muscular e, em conjunto com a análise cinemática da articulação,
discriminar as mudanças de comprimento da fibra/fascículo muscular daquelas da unidade
músculo tendínea (UMT). Dessa forma, as curvas torque-velocidade angular e
torque-ângulo podem ser relacionadas às propriedades mecânicas contráteis do
músculo avaliado.
É nesse contexto que foram desenvolvidos os dois
estudos que serão abordados aqui:
De Brito Fontana, H.; Roesler, H. e Herzog, W. In vivo vastus lateralis
force–velocity relationship at the fascicle and muscle tendon unit level. 2014.
Journal of Electromyography and Kinesiology. v.24, n.6.
De Brito Fontana, H. e Herzog, W. Vastus lateralis maximum
force-generating potential occurs at optimal fascicle length regardless of
activation level. 2016.
European Journal of Applied Physiology.v.116, n. 6
O estudo publicado em 2014 investiga a relação força-velocidade do músculo vasto
lateral nos níveis do fascículo e da UMT durante a extensão máxima
"isocinética" de joelho. Foi
avaliada a relação entre capacidade máxima de produção de força voluntária, velocidade
angular de extensão de joelho e velocidade de encurtamento da UMT e dos
fascículos do músculo vasto lateral. A fim de melhor compreender como os diferentes
níveis de força e o movimento articular afetam as velocidade de encurtamento dos
fascículos (ou vice-versa), diferentes amplitudes do movimento foram
analisadas. Verificamos que, nas diversas amplitudes avaliadas, os fascículos
respondem de maneira significativamente diferente ao aumento da velocidade
angular quando comparados à UMT e que assumir
uma conexão direta entre as relações torque-velocidade articular e força-velocidade
das fibras musculares pode acarretar em uma superestimação da velocidade de
contração dos componentes contráteis do músculo ou ainda uma superestimação da
capacidade de produção de força. Outros fatores além da taxa de encurtamento
das fibras musculares parecem contribuir para a velocidade de encurtamento da
UMT e produção de força durante contrações isocinéticas, otimizando a expressão
da relação força-velocidade no movimento humano in-vivo. Além disso a
contribuição dos componentes contráteis para o movimento articular parece
depender da velocidade, bem como da porção da curva analisada. Por exemplo, a velocidade dos fascículos é no geral muito maior durante
o movimento que precede o pico de produção de força durante a contração
"isocinética" (força crescente) do que após a ocorrência do mesmo
(força decrescente). Os resultados impactam na interpretação das curvas
torque-velocidade angular obtidas nas avaliações isocinéticas e salientam a
natureza crítica da interação entre os componentes contráteis e elásticos na produção
de torque/velocidade articular durante contrações isocinéticas.
De maneira mais intuitiva do que o descrito
acima para as relações força-velocidade, pode ser esperado que a interação dos
elementos elásticos com a porção contrátil do músculo também impacte na
expressão da relação força-comprimento
em contrações máximas e submáximas in-vivo. Embora os movimentos realizados no
dia-a-dia raramente envolvam contrações musculares máximas, nosso entendimento
a respeito da relação entre a capacidade de geração de força e o comprimento
muscular ainda é amplamente baseado em estudos utilizando máxima ativação. De
que forma o comprimento ótimo de produção de força do fascículo se relaciona
com o ângulo ótimo de produção de força durante contrações in-vivo? E ainda,
como isso se dá em contrações submáximas? Essas questões foram investigadas no
segundo estudo que citamos acima. Nesse estudo, as relações força-comprimento nos níveis do fascículo e da UMT/ângulo
articular foram analisadas para contrações máximas e submáximas in-vivo. Os
níveis submáximos de contração foram obtidos com base em 1) níveis submáximos
de força, como já havia sido descrito na literatura, e 2) níveis submáximos de
ativação. As Figuras 1 A e 1B mostram os resultados dessas análises. Embora a
análise com base em níveis percentuais de força (Figura 1A) permita uma
avaliação da complacência da UMT e a verificação de uma relação entre a força
submáxima produzida e o respectivo comprimento dos fascículos em cada ângulo
articular; é importante notar que as principais informações acerca da relação
força-comprimento e do ângulo ótimo e comprimento de fascículo ótimo para
produção de força, não são possíveis de serem extraídas. Essa abordagem com
base em percentuais de força, a qual já foi utilizada na literatura, restringe
o pico da capacidade de produção de força a um ângulo articular específico (e,
portanto, a um comprimento de UMT) independentemente do nível de produção de
forca da contração (note: 90%; 80%, 70%... do valor de força pico observado no
ângulo ótimo para produção de força máxima será sempre maior que o mesmo nível
percentual em outros ângulos articulares). Da mesma forma, o aumento do
comprimento do fascículo para níveis submáximos de força ("x" no gráfico), por vezes
interpretado na literatura como um aumento do comprimento ótimo de produção força,
pode ser entendido como o resultado do encolhimento dos elementos elásticos em
série conforme diminui-se os níveis de produção de força e não como
deslocamento do "comprimento ótimo".
É por isso que é proposto no artigo uma
segunda abordagem com base nos diferentes percentuais de ativação muscular. A
nova abordagem, com base no controle da atividade eletromiográfica, oferece
curvas força-comprimento submáximas mais representativas, uma vez que não
condiciona o pico de produção de força a um ângulo articular fixo (Figura 1B).
Enquanto que, para níveis submáximos de força (sem controle da atividade eletromiográfica),
os picos das relações força-comprimento estão fixados a um ângulo articular (e,
conseqüentemente, a um comprimento de UMT); para níveis submáximos de ativação,
essa rigidez não existe e de fato o pico de força ocorre em comprimentos de
fascículo semelhantes mas de UMT mais curtos (ângulos de joelho mais
estendidos) quanto menor a ativação/força. Com base na razão entre a magnitude
de força produzida e a atividade eletromiográfica necessária para tal, os
resultados apontam, portanto, que o
comprimento de fascículo ótimo para produção de força é constante para níveis
máximos e submáximos de ativação, enquanto que o ângulo articular ótimo para
produção de força aumenta para posições mais estendidas em contrações
submáximas. O fato do comprimento de fascículo ser constante sugere que o
músculo in-vivo obtém vantagem na condição ótima de sobreposição dos miofilamentos
independentemente do nível de ativação. Ainda, o deslocamento dos ângulos
ótimos de produção de força para posições mais estendidas parece refletir o
papel funcional do músculo vasto lateral. O vasto-lateral é um músculo
uniarticular da coxa freqüentemente envolvido em movimentos em cadeia cinética
fechada nos quais pequena quantidade de força é necessária em comprimentos
curtos de UMT e grande quantidade de força é necessária em comprimentos mais
longos de UMT. Por exemplo, quando em posição ortostática com os joelhos em
extensão e o vasto-lateral em seu menor comprimento possível de UMT, apenas
forças de pequena magnitude são necessárias para a manutenção da posição. No
entanto, quando flexiona-se os joelhos no sentido de um agachamento, como ao
sentar-se em uma cadeira, a UMT torna-se mais longa e, a medida que o momento flexor
de joelho causado pelo peso do sujeito aumenta, a força do músculo
vasto-lateral também deve aumentar. Os resultados apontem que é possível que, ao
combinar um aumento da produção de força com um aumento do comprimento da UMT e,
uma diminuição de força com uma diminuição do comprimento da UMT, a excursão do
fascículo seja minimizada a pequenas amplitudes próximas ao platô das curvas força-comprimento,
colocando-o em uma condição ótima de produção de força.
Ambos os estudos abordados aqui salientam
a importância dos componentes elásticos em série com o músculo na expressão das
propriedades mecânicas contráteis no movimento humano in-vivo. A extrapolação
de achados in-vitro para o nível articular e de contrações máximas para
contrações submáximas pode levar a conclusões equivocadas a respeito do
potencial de geração de força do músculo nos diferentes ângulos e velocidades
articulares.
Ao ignorar a contribuição dos tendões em uma avaliação
da relação torque-velocidade angular ou torque ângulo articular estamos
ignorando também o potencial adaptativo dessas estruturas no processo de
reabilitação e treinamento, assunto esse que deve também ser mais profundamente
explorado em pesquisas aplicadas futuras.
Figura 1. Relações
Força-comprimento do vasto-lateral baseadas em níveis submáximos de força (A -
topo) e ativação (B – acima). Linhas coloridas identificam os diferentes
percentuais de produção de força/ativação enquanto que as linhas tracejadas
indicam os ângulos de joelho (180 ° extensão máxima). Note na Figura 1A, que,
com a diminuição dos níveis de força, por definição, os picos de força
ocorrem no mesmo comprimento de UMT (e portanto ângulo articular - 100 °,
indicado pela linha tracejada em negrito) mas em comprimentos de fascículos
mais longos (indicados por “x”). Na Figura 1B, note que, conforme decrescemos
nos níveis submáximos de ativação, os picos de força (“x”) ocorrem em
comprimentos de fascículo semelhantes porém em comprimentos maiores de UMT; ou
seja, ângulos de joelho mais estendidos (de 100˚ de ângulo ótimo em contrações
máximas para aproximadamente 135˚ em contrações com 10% da máxima ativação –
linhas tracejadas em negrito).
Profa. Dra. Heiliane de Brito FontanaAparelho Locomotor, Anatomia - Biomecânica - Comportamento
Departamento de Ciências MorfológicasUniversidade Federal de Santa Catarina
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